O grande dia, o encontro com uma imagem que guardo na memória desde 1979.
Depois de 10 dias de caminhada e quase 300 km percorridos, estamos quase lá. De início minha vontade era fazer algo diferente no final do ano, por algum motivo, Eu e Renato Lima, conversávamos sobre as Missões, o meu desejo de conhecer a região e o desejo dele de caminhar. O cara percorreu sozinho o caminho de Santiago, saindo de uma cidade próxima a Lisboa e depois percorreu o caminho da Fé, entre São Paulo e Minas. Agora queria o sul do Brasil. Nem de longe esse era o meu objetivo. Mas o cara encontrou um caminho e pior me convenceu a entrar nesta aventura. No fim da história, quero agradecer ao meu amigo de mais de 20 anos pelo feito. Curto andar, subir montanhas, entrar de cabeça no mundo natural, mas confesso, dessa vez foi demais. Fui longe demais.
O texto é o mesmo, o sol nem bem nasceu e nós já estamos prontos para mais um dia de jornada funcionando quase no automático todos os dias. Você abre os olhos, fica de pé, vai ao banheiro, toma o café reforçado e volta para estrada. Anda alguns quilômetros e começa a se perguntar quanto tempo já andou, quanto tempo falta e segue enfrente. Usei uma estratégia simples, colocava o chapéu, óculos escuros, abaixava a cabeça e seguia a maior parte do tempo deste modo. Isso sem pensar, vez ou outra, a monotonia era quebrada por uma paisagem bela ou não.
Pelo caminho se vê o poder da roça contemporânea, bem diferente daquele tipo que a gente cultiva no imaginário coletivo. Como me disse Terezinha Nitahara, parece uma cena de Avatar. Tão assustadoramente gigantes, que parecem funcionar sozinhas, e a realidade é essa, algumas funcionam sem ninguém mesmo, noite e dia. Em algumas propriedades, elas são teleguiadas.
Minha companheira de caminhada neste trecho foi Terezinha Melo.
A mulher é valente, não cansa e não desanima, anda elegantemente com sua sombrinha de fazer inveja pelos campos missioneiros. Seguiu também um cão filhote, simpático. Ele foi seguindo adiante e acompanhado de perto por uma cadela de caça. Confesso que não gostei da companhia deles, dos dois cães, acho bonitos de olhar e um saco pra criar. Essa é a minha opinião, tem quem goste e tudo bem. O fato é que o tempo foi passando e eles ali acompanhando passo a passo. Lá pelas tantas, o pequeno se meteu entre minhas pernas, nem ele e nem eu andávamos mais.
A cadela, mais esperta pressentiu o perigo à frente e tratou de resolver o problema ela mesma. Mais a frente havia uma propriedade, com outros cães mais valentes e corajosos, logo começaram a latir e demonstrar sua “força”. Ela foi em direção a eles, latindo forte e os colocou pra correr, como geralmente acontece, até que entrassem para casa, enquanto isso nós avançávamos e o pequenino já dava sinais de que se sentia mais corajoso pra sair das minhas pernas. Logo vencemos o caminho, olhei e a cadela estava de guarda, lá embaixo. Não tardou muito e estava em nossa companhia novamente, foi uma cena e tanto. Comecei a gostar destes bichos babões, que costumam fazer suas necessidades nas ruas e a latir alto quando tento dormir.
Pouco tempo depois, fomos abordados por um motoqueiro, que estava em busca dos cães. Ele havia recebido um telefonema, dizendo que os dois estavam de novo entre os peregrinos. Parece que é um hábito do pequeno. Ele, percebendo a intenção do motoqueiro, tentou fugir. Foi colocado numa cesta e fugiu novamente, até que o dono conseguiu convencê-los de que o melhor a fazer seria voltar pra casa de moto. Foram embora e não sabemos mais nada sobre eles. Até passei a admirar a coragem do bichinho, mas já passou, e pelo que entendi, ele segue junto e depois não sabe voltar sozinho, por isso a cadela o acompanha sempre. Legal, né! Pensando bem, tem sempre alguém no teu caminho pra ter dar aquela força, seja você quem for.
O asfalto surge em nosso caminho e já avistamos a imponente igreja de São Miguel Arcanjo, em São Miguel das Missões. Esperei tanto por este dia, que mesmo enxergando de longe, já dava sinais de ansiedade. Paramos para o almoço, alguns metros antes de ficar frente a frente com ela. Pedi uma dose de uísque e relaxei, queria chegar lá relaxado para contemplar.
Talvez, este colosso de a exata dimensão do que tenha sido essa região há uns 300 anos atrás. A quantidade de gentes circulando pelos caminhos que percorremos, refizemos entre uma redução a outra. Em pensar que por decreto e acordos palacianos, decidiu-se por acabar com tudo, dizimar essa gente. Quando se entra neste local, há imediatamente uma sensação de paz, uma paz que você só encontra em solo sagrado, onde o silêncio é sepulcral. Essa foi a minha sensação, estava num local, onde tudo, cada pedra do lugar deveria ser respeitada.
Lembrei-me de uma música do Skank, As noites.
“As ruas desse lugar
Conhecem bem…
As casas desse lugar
Se lembrarão…
As pedras municipais
Se impregnaram”
São Miguel foi fundada em 1687, no mesmo ano que São Luiz Gonzaga. A igreja foi erguida com ajuda de 100 homens, entre 1735 e 1745. Na verdade a cidade teve dois momentos fundadores.
Para mais detalhes sobre a história do local acesse: http://www.saomiguel-rs.com.br/Turismo/ e sobre as Rota das Missões
Não sei acrescentaria alguma coisa mais falando sobre este lugar, sua imponência, sua vitalidade, sua obra e as imagens falam mais do que qualquer tentativa minha de tentar dizer algo. Voltei a este lugar na noite de 31 de dezembro, assisti um trecho da missa, dentro da igreja, toda iluminada com velas pelo chão, um coral muito bonito, pessoas carregando cadeiras de praia chegando e se acomodando. Perto da meia noite, do lado de fora, mas dentro do que foi a grande cidade, comemoramos 2012.
Por algum motivo, eu estava de volta aquele lugar, depois de muitos séculos.
Para saber mais sobre o Caminho das Missões
Por Marcelo Ferraro/editor floripacool.com