É o dia do despertar da civilização, da constatação de que grandes monumentos foram erguidos nos mais longínquos dos sertões brasileiros. E tentar entender os propósitos religiosos e governamentais de outras épocas.
O magnífico sino, não toca mais, mas diante dele fiquei imaginando o “marcar” do tempo na redução, anunciando a alvorada, a missa, o meio do dia e o final da tarde de trabalho, os estudos etc. Imaginei através dele, gentes cruzando de um lado a outro o pátio enorme, onde havia os casarios, jardins, ruas, escolas etc. Em pensar que o sol marcou o tempo durante milênios, o sino o tempo das cidades, o apito o tempo das fábricas, o relógio o tempo da das pessoas e a pressa o tempo de todo mundo. Caminhando, não há porque marcar o tempo e ter pressa. Mas estamos condicionados.
Diante destes ornamentos todos nas colunas de pedra, tentei visualizar as mãos calejadas pelo esforço de entalhar uma cidade e ao mesmo tempo a sensibilidade de cada artesão envolvido para esculpir blocos inteiros e dar sentido figurativo a eles. Parece pequeno olhar a obra feita, ainda mais do ponto de vista contemporâneo, onde tudo tem formas prontas, retas ou não, onde o relevo injetado barateia o custo da produção de algo que é sempre caro ao consumidor. Esteiras rodando trazendo e levando peças e componentes, onde tudo é injetado, calculado e o homem vez ou outra, descartado por sistemas cada vez mais mecanizados.
Deveria ser grande pensar nas habilidades desenvolvidas aqui nestas cidades, no talento das gentes e sobre tudo no esforço humano de construir grandes monumentos a partir do uso das mãos, da técnica e da ferramenta. Hoje o trabalho do artesão, do operário, de qualquer um que faça coisas, parece ser insignificante diante do poder da propaganda e da sociedade de massa. Hoje é tudo plástico, tudo vira fumaça em pouco tempo. O diferencial consiste em ter mais memória, ser mais potente e ser mais caro que o modelo básico. O melhor é o bom vinho, um bom bife, um ótimo restaurante. Tudo é mensurado a partir de um único padrão, “padrão bom”, que não inclui a simplicidade e os grandes feitos.
Hoje é outro dia, como todos os dias nas Missões, o caminho te espera.
O sol surge imponente e o caminhar é bastante penoso. Ele é cheio de pedregulhos entre vales e montanhas e dificulta e muito o caminhar exigindo do caminhante mais esforço. Em alguns momentos a pressa de chegar e o desconforto de sentir o corpo pedindo trégua, a sede aumentando e a água cada vez mais quente começam a atarantar a cabeça. Tudo parece infinitamente maior do que é. A próxima sombra é o objetivo maior, o próximo passo, a próxima parada e assim por diante.
São Miguel é lembrança, vai ficando pelo caminho como todos os outros locais pelos quais passamos nos últimos dias. Pelo trajeto fomos adicionando pessoas, gente daqui e dali e de todas as partes. A cada chegada uma prosa boa que faz com que centenas de informações que você recebe no dia a dia da metrópole, não têm utilidade prática neste fim de mundo. Quando dei por mim, nada do que eu supunha saber fazia a diferença. Todo o conhecimento adquirido e acumulado, não me fazia melhor ou pior que qualquer outra pessoa que cruzasse pelo caminho nestes dias. Naquele momento, a força, a resistência, a observação e a paciência eram as ferramentas mais importantes que um homem sábio poderia carregar consigo.
A vida no campo exige este conhecimento.
Um conhecimento que na cidade grande desconhecemos.
Neste dia adotei duas estratégias, vim bem lento no início e caminhei mais rápido logo que percebi a dificuldade do caminho e a temperatura aumentando. Lá pelas tantas, bem mais próximo do ponto indicado para o almoço, percebi que as pessoas que estavam na minha frente haviam sumido do meu campo de visão. No mapa, havia uma indicação clara que logo após um pontilhão deveríamos cruzar a esquerda e seguir no meio da plantação. Fiquei na dúvida, estava sozinho e não conseguia esclarecer com certeza que caminho tomar. Decidi seguir a esquerda, embora não tivesse uma sinalização clara e ou uma indicação do local, de lá observei a dupla da frente seguindo pelo caminho errado.
Comecei a gritar na tentativa que alguém me ouvisse. Por sorte!! Eles me viram. Esperei para registrar o momento e seguimos juntos, em meio à plantação de soja e milho verdinhos. A mágica é simples, basta olhar o tamanho da geringonça que goteja água dia e noite sobre a terra. A sinalização de um caminho é muito importante; na primeira semana, havia algumas boas dicas e outras bastante complicadas de decidir. Talvez fosse o caso do Brasil, dos municípios em que há peregrinação, um esforço maior para manter os locais bem identificados. O que aumenta consideravelmente a boa impressão daqueles que estão praticando o esporte. Os mapas que nos auxiliam, também mereceriam um detalhamento um pouco melhor, nem todo mundo costuma andar auxiliado por Guias condutores.
Claro que nestes treze dias, percebemos o esforço do pessoal do caminho para manter o projeto e o trajeto em perfeitas condições, mas acho que deveria haver mais empenho das cidades em melhorar a recepção e cuidar mais da sinalização. Tenho certeza que muitas pessoas depois de acompanhar algumas histórias terão curiosidade de conhecer os locais. Recomendo que o façam e que tenham essa experiência e valorizem este patrimônio da humanidade que são as Missões. E que o projeto se estenda para as regiões no lado Argentino e Paraguaio. Em breve, devo conhecê-los também.
Uma parada para o descanso, almoço, aquele cochilo gostoso, uma visita à produção de cereais na propriedade e linha novamente. Desta vez, sai acompanhado do amigo Giordani. Seguimos falando de nossas histórias pessoais, falando da vida, dos pais, dos filhos… das coisas boas e dos aprendizados que a vida adulta nos obriga todos os dias.
Trinta kms depois Carajazinho.
Para saber mais sobre o Caminho das Missões.
Por Marcelo Ferraro/editor floripacool.com